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ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS, UM SUSTO


Margarida Azevedo
Sintra/Portugal 

Em qualquer organização religiosa há a distinguir três tipos de pessoas, com interesses bem distintos:
1 - os que constróiem o edifício teológico, traçam as linhas ideológicas identitárias da organização, estabelecem as regras de conduta, elaboram a orgânica administrativa – teólogos e investigadores, elementos mais proeminentes da hierarquia sacerdotal e professores universitários;
2 - os que zelam pelo cumprimento dos seus preceitos, por isso mais próximos dos fiéis: elementos da base da hierarquia sacerdotal, acólitos, catequistas e demais leigos, segundo a organização em causa;
3 – os fiéis em geral: seguidores, crentes, simpatizantes.
Vamos debruçar-nos sobre os primeiros.
Entre as organizações importantes, as religiosas são as mais importantes. Devemos-lhes, entre uma multiplicidade de aspectos inerentes a cada uma de per si, a educação e respectivas correntes pedagógicas, cuidados de saúde, de ajuda aos mais necessitados, e, muito especificamente, o levantamento da fé como algo estruturante do indivíduo, factor privilegiado de socialização. No entanto, dificilmente explicável, ou não, falharam redondamente. Porquê?
Em vez de traçarem um caminho dos fiéis rumo à felicidade, fizeram do sofrimento um meio virtuoso de chegar a Deus; divindindo o panorama religioso em dois, o pagão e o monoteísta, criaram dois tipos de crentes, dois tipos de fiéis, dois tipos de pessoas, com dois graus de importância, com dois caminhos de fé, com dois objectivos distintos, a saber, a felicidade na terra, para os pagãos, a felicidade no céu, para os monoteístas.
Ao imporem comportamentos que vão ao arrepio da natureza humana, construiram um mundo à parte, isolaram-se, facto que se tem perpectuado até aos nossos dias.
Assim, estabelecendo um paralelismo entre o mundo terreno e o mundo celestial, fizeram daquele um mundo de malefícios e de vícios, incompatível com a boa-ventura do mundo celestial. Criaram preceitos e práticas sacrificiais, supostamente salvíficas, ritualística complexa para agradar a Deus/deuses.
Minimizando o natural sofrimento do ser humano, ou enaltecendo-o, conforme os interesses, excluindo-o, habitualmente, de uma abordagem espiritual, sobrepuseram a este um segundo sofrimento, artificial, muito maior, o qual consiste na descontextualização sociológica da existência humana, apresentando o mundo como um palco de males a abater o que, naturalmente, culmina em comportamentos alucinados.
A felicidade neste mundo foi sempre encarada com temor e desconfiança, uma vez que retira ao céu a primazia e a exclusividade da mesma. Dito de outro modo, só no céu é que é possível ser-se feliz.
No entanto, esse céu exclusivista e ciumento mais não é que o prolongar dos prazeres do inconsciente, no seu pior, tais como: sensualismo e machismo - um mundo de orgasmos eternos, onde o fiel vive rodeado de virgens; avareza/egoísmo - posse do mais fino ouro, numa riqueza sem fim; gula - um banquete farto de excelentes iguarias; preguiça/ócio - um festim eterno, dança e riso permanentes, onde ninguém trabalha; desprezo/não-perdão – os inimigos foram destruídos para sempre; ignorância – ausêcia de perspectivas intelectuais pois não faz falta estudar… e muitos mais poderíamos citar, todos contrários à santidade e pureza espirituais.
Profundamente conhecedoras das fraquezas humanas, mais especificamente com os seus fetiches, e por isso mais ocupadas com estes do que propriamente com a salvação das almas, as organizações religiosas têm mexido habilmente com os anseios mais profundos dos seus fiéis: saúde, paz e prosperidade para sempre, sobretudo, prazer eteno. Nada interessadas em tornar o mundo melhor, prometem tudo isso no além. O preço é cumprir rigorosamente com as práticas impostas e desprezar o mundo.
De tribais a ordens militares, impuseram-se pela força semeando terror. Foi assim que impuseram os seus deuses, encabeçando o destino dos povos e, dessa forma, desenvolvendo a subserviência, garantindo riqueza para si, honrarias, lugares de destaque político. Hoje, não é diferente, apenas sociologicamente descontextualizado, ou pelo menos deveria sê-lo.
Era suposto a humanidade ter evoluído na sua fé e na sua religiosidade, só que as organizações religiosas não o permitem. Cinicamente indo procurar na História os seus piores momentos, há quem desculpe os actos violentos com os comportamentos de outrora; uma espécie de pena de Talião, olho por olho e dente por dente, ou pela lei do karma, “fizeste no passado estás a pagar no presente”. Ora a História é uma ciência que nos descreve o nosso caminhar no mundo, a manifestação da nossa espiritualidade no mesmo, rumo a nada mais importante que a felicidade. As batalhas de ontem não são as de hoje. Convém dar essa impressão, mas não é bem assim.
Estamos a viver momentos históricos singulares, problemas acutilantes onde o principal é a sobrevivência da própria humanidade. Isto é novo. Isto levanta questões como: Que humanidade estamos a construir? Que influência terão os robots no seu percurso existencial? Qual o seu real contributo? Por outro lado, os recursos naturais estão a esgotar-se, o respeito pela Natureza desapareceu, a pessoa humana tem… outro valor: que outro e que valor? As organizações religiosas não estão a dar resposta.
É urgente sensibilizar os fiéis para a mudança de comportamentos de fé pois há que rejeitar os belos discursos. Há que agir em prol de uma paz estável, o que já não significa apenas na Humanidade inteira, mas abrange também a relação desta com a Natureza. Aliás, verdeiramente, nunca deixou de o ser. Quem não estiver em conformidade com o mundo natural também não está com o seu semelhante, e vice-versa. Nem com Deus.
É chegado o tempo em que as organizações religiosas têm que encarar este mundo como uma das moradas do Pai, desenvolver esforços no sentido de criar um céu aqui e agora, porque amanhã pode ser demasiado tarde. Praticar o bem é sempre uma urgência.
Mas se teimarem, cada uma por seu lado, a impôr-se como verdades absolutas, então elas prolongam o desfazamento e desconforto sociais nos fiéis, e estes, assustados com o diferente porque é mau, agrupam-se, criando espaços/localidades exclusivamente deles, autênticos guetos.
São as micro-sociedades, com leis próprias, escolas e curricula particulares, não raro a-científicos e com preceitos ético-axiológicos perigosos. A consequente desvaloração deste mundo confere aos fiéis a ilusão de que dessa forma têm Deus do seu lado, transformando-a em acto virtuoso.
Ora o mundo é uma irmandade de gente filha do mesmo Deus. A dessocialização cria o cancro do isolamento: a ilusão de que se é privilegiado por pertencer a esta ou àquela congregação, o não-mundo porque este não presta e nós somos bons, os bons, os melhores. A nossa escola é a que melhor prepara para a vida, a mais intelectual, rumo aos campeões da ciência, a mais segura e longe de todos os perigos, não interessando dar à sociedade sugestões para acabar com a insegurança nas escolas públicas, nem traçar objectivos de vida aos jovens, implicando os fiéis numa ressponsabilidade que é de todos.
Mas onde estão, verdadeiramente, as causas de tudo isto? Como é que se chegou a este ponto, de tal forma que gente com mais bases intelectuais tem comportamentos que supostamente já não deveria ter? Como é que um pedreiro se iguala a um juíz? A natureza humana é permeável à subserviência, e esse é que é o problema. A carência afectiva ou um grande problema existencial podem conduzir a qualquer pessoa a actos da maior irracionalidade. No sofrimento somos todos iguais, estamos todos em linha recta para o desespero, logo todos igualmente expostos à manipulação. É tudo uma questão de tempo e de: um rosto simpático que surge quando menos se espera; uma palavra acertiva nuns lábios risonhos; um rosto de olhos brilhantes, um discurso bem elaborado....
Por isso não é difícil às organizações religiosas manobrar o inconsciente colectivo. Aguçar o narcisismo é fácil. Isolar a pessoa da família, desmembrando-a, dos colegas de profissão, fazendo perigar o próprio posto de trabalho e, consequentemente, conduzir à dependência e sujeição; excluir de práticas desportivas e artísticas, de lazer, etc., chegando ao ponto de fazer expulsar do lar os filhos indesejados, maridos/esposas que, por algum motivo, deixaram de pertencer à organização religiosa da família.
A rejeição dos filhos, por exemplo, está a tornar-se cada vez mais comum, remetendo cidadãos equilibrados afectiva, psicológica e socialmente para os insondáveis quão turtuosos caminhos da desilusão, do desprezo familiar, do ateísmo pela falta de humanidade a que a família se votou, em nome de uma organização que, tão vituperiante quão feroz, ensina a excluir tudo o que se lhe oponha. Os fiéis, drasticamente hipnotizados pela promesssa da felicidade no além e no suposto agrado a Deus, sempre as velhas promesssas, excluem de suas casas o bem mais precioso que Deus lhes ofereceu e do qual são os responsáveis por fazer cidadãos correctos e equilibrados, o maior amor das suas vidas, e que passou para segundo plano.
Os filhos passsam ao estuto de representantes do maligno, diabos dentro de casa, infiéis malditos, o que há que excluir definitivamente. E assim vão semeando a deshumanização. Dito de outra forma, para o topo das organizações religiosas, ainda que muitas digam que não é assim, e seria bom que de facto não fosse, a humanidade reduz-se a um bando de infiéis. É pena.
Não basta não usar armas de fogo ou outras. é fundamental enterrá-las, sejam elas de que natureza forem.

(Continua)

Bibliografia consultada:
KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro Terceiro, As Leis Morais, cap. II, Lei de Adoração, pp. 275-284.
LE BOM, Gustave, Psicologia das Multidões, Publicações Europa-América, Mem-Martins, s/d.
Sites:
Father George Coyne Interveiw (1/7) Richard Dawking
Faith in the Future: The Promise and Perils of Religion in the 21st Century
Marcelo Gleiser – Ciência e religião: em busca do desconhecido
Richard Dawking:
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