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O PÃO DE ISABEL



Margarida Azevedo



            Descendo a escadaria do palácio, envergando os seus trajes nobres, carregava o pão no regaço rumo às vielas, travessas e becos perdidos na imúndice da pobreza extrema.

            Libertadora da fome silenciada, a rainha caminhava distribuindo, santa e bela, o alimento divino e puro. Os pobres tornam-se, assim, elemento fundamental de uma oração alicerçada na experiência dura de quem não tem voz; oração qual rota da seda, até ao ritual da produção e confecção do pão rumo a um fim aliviante, feito de alma.

            Com isso, Isabel se purificava também, crescia na sua espiritualidade já elevada, na vivência de um evangelho todo prática, todo esperança, todo oração. Não ia pregar, ia exemplificar, dar testemunho de uma fé que, sem obras, é cega. Não era caridade, mas amor profundo, porque abordar Deus não é palavrear nem rebaixar quem recebe. Naquele pão estava Deus no silêncio das palavras.

A nossa tradição judaico-cristã gira em torno da simbólica do pão, estendendo-se às  funções: alimento do corpo e do espírito; provação e fé; desespero e providência.

Elemento agrário, trabalhado e confeccionado pelas mãos humanas, do chão se eleva ao divino; da terra às mós dos moinhos de água. Era confeccionado com água e sal, com ou sem fermento; o pão é a fusão da Natureza, do homem e de Deus.

O povo hebraico, quando levado para o deserto, conduzido por Moisés, foi alimentado por um maná enviado por Deus, o Pão da Vida. “Eis que vos farei chover pão do céu; sairá o povo e colherá a porção de cada dia, a fim de que eu o ponha à prova para ver se anda ou não na minha lei.” (Ex 16: 4).

Esta afirmação do pão de cada dia reveste-se de uma carga teológica profunda, transportando-nos para a fé de que quem está com Deus nada lhe faltará, terá sempre o necesssário para cada dia. Por outras palavras, o pão não se acomula, não se guarda como um tesouro, ou como o dinheiro no banco para a aquisição de bens. O pão de cada dia é uma presença incondicional e constante, que sacia em qualquer momento aquele que crê firmemente.

Em Mateus 4:1-4, a figura do diabo tenta Jesus, depois do jejum, ordenando-lhe que converta as pedras em pão. Ora, nem só de pão vive o homem, isto é, o pão que é a palavra de Deus não é uma transformação de pedras, resultado de uma tentação.

Durante  quarenta dias de jejum, Jesus alimentou-se da Palavra de Deus. O jejum, tão esquecido pelas igrejas cristãs, devia ser retomado como peça fundamental da fé. Ele recolhe o Espírito sobre si mesmo; promove a reflexão, purifica. Vivemos num mundo onde somos levados a ter uma consciência sobre os que morrem de fome, paradoxalmente querem que esqueçamos os que morrem na opulência, que são mais que os outros, basta debruçarmo-nos sobre as doenças do mundo industrializado.

No Pai Nosso Jesus ensina-nos a pedir o pão de cada dia. Na Última Ceia Jesus parte o pão e reparte-o pelos presentes. Não se trata de um repasto farto. É uma Ceia simbólica. Quantos de nós, sabendo que iríamos ser entregues às autoridades, torturados e mortos, procederíamos de forma idêntica? Aquele Pão é uma despedida que não é definitiva,  ela transcende o corpo físico e asssume-se como vivência toda espiritual. Antecipa o regresso de Jesus em ressurreição, símbolo de vida eterna. O Pão da última Ceia é também o regresso de Jesus às suas raízes campestres: nascceu e foi visitado por pastores e reis magos; vai ser morto e recorda os agricultores, a terra, o renascer.

Amar a Deus na simbólica do deserto e da morte na cruz é difícil. Amar é sempre difícil. Há um dentro e um fora  de nós; entram em conflito sentimentos que se interpenetram. No amor não há fugas. O pão mastiga-se, engole-se, sacia. Mata o que nos mataria, a fome. O Pão da Última Ceia cultua a Fome de encontro definitivo com o Divino, o Amor eterno.

Vivemos o drama da procura do Amor, desde o deserto à cruz; vivemos a emergência da fé nos momentos cruciais, aqueles mais íngremes, mais encrespados. Somos actores de uma dramaturgia não institucionalizada porque o Amor é ligação directa à Cruz, aos excluídos, ao perdão e aceitação da obra dramática que é a vida. Ninguem melhor que uma rainha para representar o papel dessa carga simbólica. Ninguém melhor que Isabel representou esse drama.

A rainha Santa Isabel repartia o pão pelos que viviam no deserto de nada possuírem, na cruz de não serem ninguém. Porém, ao receberem aquele pão, os pobres fazem história e a rainha imortaliza-se como tão cantava Camões: “Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”.

De Moisés a Jesus, dos pobres a Isabel, rainha Santa, todos são filhos de um mesmo Pai, alimentados da mesma substância porque, em Cristo: “Já não há senhor nem escravo….”

Aquele pão trazia consigo a solidão de uma magestade que, incompreendida, tinha nos pobres os seus maiores aliados.

O pão é uma metáfora. Na nossa fé, tão poética, o pão é Deus, é Vida, é Amor, além de alimento, consolo e memória.



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