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NÃO QUEIRA COMPORTAR-SE COMO UM ANJO

Margarida Azevedo
Frequentou Universidade Nova de Lisboa
Mora em Sintra

Não queira comportar-se como um anjo, seria o mesmo que um cavador querer dançar ballet, ou então um minúsculo pirilampo armar-se em candeeiro de pé alto. Podemos ser alvo das mais diversas tentações, a de querer ser rico é a mais comum, mas a de querer comportar-se como os anjos é a pior de todas.

A imaginação, na sua fértil epopeia, cria a fantasia, não raro o delírio de supor que aqueles que estão muito acima de nós são como os imaginam. É certo que temos que ser compreensivos para com a natureza humana, mas fazer do delírio a realidade é, além de exagerado, perigoso. 

Tal atitude cria máscaras, remetendo o factor religioso para a fantasia do “não eu”, isto é, uma procura incessante da identificação com algo que não é mais do que fruto da imaginação.  De um ponto de vista sociológico e psicanalítico, chamamos a isto tão simplesmente o ridículo da crença, porque fora do contexto social em que se encontra, sem viabilidade porque inacessível ao outro, que vulgarmente encara como uma ameaça, e com um discurso que toca o alucinado; muitos usam roupas voláteis e claras, fazem  jejuns prolongados, os rostos revestem-se de candura e tornam-se amarelados, os corpos magricelas, sorrisos contidos porque supõem que os anjos não riem a bandeiras despregadas, ingenuidades bucólicas defensoras da paradisíaca e sã vida selvagem, etc.

Viver o que se não é significa excluir-se a si mesmo das suas responsabilidades, a todos os níveis, estar fora da realidade, no fundo, uma vida que não passa de um projecto, deixando o presente passar ao lado com toda a sua riqueza.

A preocupação em ser útil faz de cada um o próximo do outro. Sentir-se implicado no crescimento e no progressso do meio, ser solícito e saber que contam consigo é, pensamos, a melhor forma de seguir o caminho que conduzirá, um dia, à angelitude. Porém, fazê-lo sempre enquanto humano e muito humano, porque é o que isso efectivamente se é, e não nos é possível ser de outro modo.

O ímpeto de angelitude significa a loucura de uma exigência de espiritualidade que ainda não é para nós. Criando o marasmo, torna insignificantes as complexas exigências da sociedade moderna, culpabiliza os homens e as mulheres por serem simplesmente humanidade em todas as suas acções diárias. 

É bom não esquecer que, cá neste mundo, ainda há tanto por fazer… Já pensou que o progresso científico e tecnológico tem conduzido as sociedades a índices de violência jamais alcançados? A racionalidade exagerada tem precipitado o planeta na insustentabilidade? O que é mais importante: defender o humano, a sua integridade, ou construir projectos de anjos, moldes de pureza formatados à míope medida de quem despreza a Natureza, os Animais, a Cultura, a Ciência, na sua verdadeira acepção, a saber, a melhoria das condições de vida para todos?

Mais, como crentes, o que é que tem mais peso: provar a existência de Deus, dos anjos, como estes vivem, se têm sexo ou são assexuados, que há algo que sobrevive à morte, ou o modo como nos comportamos num mundo criado com tudo para sermos minimamente funcionais e felizes, onde consigamos, com sucesso, fazer escala num dos muitos patamares evolutivos? Não responda, pense primeiro.

Com os evangelhos, aprendemos que conquistamos o Reino de Deus mediante o modo como vivemos a nossa espiritualidade e o modo como estamos no mundo. O Sermão da Montanha (Mt 5-7) e o Sermão da Planície (Lc 6: 20-26) abrem-nos o entendimento desconcertando-nos, indiciando o modo como entrar numa humanidade em que ricos e pobres têm lugar idêntico no Reino de Deus, mediante um universo de esperança apoiado no modo como é vivenciada a relação com a riqueza, a pobreza, a alegria e a tristeza, mas muito especialmente na projecção em horizontes mais vastos que não os da nossa casa. São textos de um forte apelo existencial que visitam a nossa vida onde todos cabem, isto é, não aprisionam sob um contexto ético determinado, mas que superam todas as éticas. Não interessa ler o texto, mas relê-lo se, como tal, nos projectarmos para uma vivência que faz da felicidade o seu maior objectivo.

Deus nos livre de querermos comportar-nos como anjos, daríamos uma má imagem de tais mercês e perderíamos o comboio da humanidade. 

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