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Herculano Pires e o Roustainguismo

Leonardo Marmo Moreira


A atuação de Herculano Pires como espírita militante destacou-se por sua franqueza ao expor suas opiniões, sobretudo quando era deparado com pregações incoerentes do ponto de vista doutrinário (MOREIRA, 2015; LAVARINI, 2015). O professor Herculano teve uma atuação doutrinária de tamanha polivalência, com especial destaque para a defesa das bases kardequianas, que, com tranquilidade, podemos incluí-lo no seleto grupo dos maiores missionários espíritas que a humanidade já conheceu desde o advento da Doutrina dos Espíritos a 18 de Abril de 1857. Mesmo considerando períodos anteriores a 1857, chegando, por exemplo, a 1848 com os conhecidos eventos de Hydesville, os quais muitos utilizam como referência concernente ao surgimento do chamado “Neo-Espiritualismo”, e mesmo a períodos mais recuados (época dos precursores do Espiritismo e dos magnetizadores, tais como Mesmer), a atuação de Herculano Pires continua apresentando evidenciado relevo dentro do contexto geral do surgimento da chamada “Nova Era” para a humanidade em termos de Espiritualidade.
O profundo conhecimento doutrinário associado a uma vasta cultura geral, uma grande veia literária e um idealismo ímpar tornou o Professor Herculano Pires um defensor inigualável do valor da obra de Allan Kardec. Realmente, todos esses pré-requisitos proporcionavam significativa repercussão aos esforços de Herculano justamente por causa de sua força de trabalho e de seu sentido de abnegação raríssimos em todas as áreas da humanidade, incluindo o Movimento Espírita.
A frequente divulgação de ideias em oposição aos princípios doutrinários básicos da “Codificação”, quando dentro do contexto do movimento espírita, tinha sempre em Herculano um obstinado opositor, para que o movimento espírita não perdesse sua diretriz de segurança que sempre foi e sempre será a obra de Allan Kardec.
Destacando-se como escritor, orador, tradutor, revisor, polemista, entre outras atuações, representou, em uma época de grande efervescência dentro do Movimento Espírita Brasileiro (e também do movimento espiritualista brasileiro de uma forma geral), uma referência de coerência doutrinária espiritista e fidelidade às bases kardequianas. De fato, sem se circunscrever apenas aos postulados kardequianos, estudava novas contribuições, sem, no entanto, se deixar levar por modismos e “novidades”, que não fornecessem respaldos doutrinários mínimos. As ideias estranhas à Doutrina Espírita frequentemente penetravam (como ainda penetram) o movimento espírita ou mesmo eclodiam (como ainda eclodem) do próprio movimento, aproveitando brechas deixadas pelo baixo nível de vigilância no estudo e preservação de diretrizes de maior grau de segurança doutrinária por parte de nós mesmos, os militantes espiritistas, células básicas do movimento espírita.
Ademais, não é possível ignorar o desejo de projeção pessoal, incluindo frequentemente uma busca de originalidade, mesmo que em detrimento de critérios mínimos de coerência lógica.
Na verdade, Herculano não era taxativamente contra as chamadas “novidades”, mas seguindo os critérios de Kardec e Erasto, submetia tais propostas a uma rigorosa avaliação para definir se as mesmas poderiam ser ou não veiculadas dentro de um contexto espiritista. Ademais, Herculano foi um percussor da proposta popularmente conhecida como “comece pelo começo” e, em matéria de Espiritismo, o começo, obviamente, é a Codificação.
Tais reflexões acabam denotando a importância da contribuição de Herculano Pires, principalmente se analisarmos o contexto de trabalho no qual sua atuação era desenvolvida. Eram outros tempos, bem diferenciados em relação aos dias atuais. Apesar de algumas semelhanças, pois, presentemente, também vivemos uma eclosão de modismos e tendências sem maior sustentação doutrinária, os tempos de atividade doutrinária de Herculano Pires tinham maior número de fatores complicadores, o que precisa ser levado em consideração ao avaliarmos a situação do movimento espírita brasileiro no qual Herculano Pires atuou assim como a importância de sua contribuição.
E realmente não eram tempos fáceis. Herculano Pires viveu uma época difícil para o movimento espírita brasileiro, no qual perseguições externas, motivadas por preconceitos arraigados; divergências e até mesmo dissidências internas faziam parte do dia-a-dia do trabalhador espírita. Obviamente, o movimento espírita contava com um número muito menor de adeptos do que apresenta atualmente e o preconceito das religiões oficiais, e até mesmo de órgãos governamentais, era muito mais virulento. Isso fazia com que os Espíritas militantes mais abnegados tivessem realmente que viver diariamente um nível de “renúncia evangélica”, que faz lembrar, guardadas as devidas proporções, à dedicação dos divulgadores do Cristianismo no século primeiro (séc. I).
Legítimo herdeiro da determinação, capacidade de trabalho e firmeza de caráter de Cairbar Schutel (aliás, Herculano Pires atuou muitos anos em um centro espírita cujo nome era justamente “Grupo Espírita Cairbar Schutel”) (Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires, 2015), Herculano tornou-se um epicentro de qualidade doutrinária para o movimento espírita paulista, brasileiro e mundial.

Trajetórias pessoal, profissional e conversão à Doutrina Espírita
Herculano Pires nasceu em Avaré (SP), em 25 de Setembro de 1914, sendo filho do farmacêutico José Pires Corrêa e de sua esposa, a pianista Bonina Amaral Simonetti Pires (RIZZINI, 2001). Herculano era primo de Cornélio Pires, ícone da cultura popular do interior do estado de São Paulo e conhecido autor espiritual que, através da mediunidade de Chico Xavier, trouxe uma importante contribuição para as nossas reflexões sobre “Lei de Sociedade”, “Lei de Justiça, Amor e Caridade” e de uma série de correlações entre a vida espiritual e a vida física na crosta terrestre.
Herculano casou-se com Maria Virgínia. Tiveram quatro filhos, dentre eles, Heloísa Pires, extraordinária escritora e expositora espírita. Heloísa é formada em pedagogia, tendo publicado, inclusive, um excelente livro sobre seu pai, intitulado “Herculano Pires, o Homem no Mundo” (PIRES, 1992).
Graduado em Filosofia pela USP em 1958, Herculano publicou uma tese existencial: “O ser e a serenidade”. De 1959 a 1962, foi docente titular da cadeira de filosofia da educação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Foi membro titular do Instituto Brasileiro de Filosofia, seção de São Paulo, onde lecionou psicologia. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo de 1957 a 1959.  De fato, atuou muito tempo como jornalista dos “Diários Associados”. Além disso, foi professor de sociologia no curso de jornalismo ministrado pelo Sindicato (www.fundacaoherculanopires.org.br).
Herculano Pires converte-se ao Espiritismo aos 22 anos, depois de uma verdadeira saga em busca de uma doutrina que representasse a filosofia de vida/diretriz de comportamento mais elevada que pudesse estar disponível à humanidade. E foi assim que lendo, estudando e meditando, Herculano chega ao Espiritismo já amadurecido por uma busca prévia bastante rica, por ter sido propiciadora de um desenvolvimento de sua capacidade crítica em relação à avaliação de pontos positivos e negativos das diversas correntes de pensamento vigentes em seu tempo.

                Herculano Pires e o Roustainguismo
                Herculano Pires foi crítico do chamado “Pacto Áureo” (1949), pois, em sua opinião um diálogo mais profundo com maior abertura para a manifestação das várias representações do movimento espírita nacional deveria ter sido proporcionado. Espíritas nobres de ideal e de coração acabaram cedendo a um acordo, na visão de Herculano, precipitado, em prol da união, pois as divergências entre os grupos eram bastante acentuadas.
                É interessante frisar que Herculano Pires registra sua opinião contrária ao roustainguismo em praticamente todos os seus livros como autor único, inclusive em sua obra  “O Espírito e o Tempo”. É digno de nota que, em pesquisa realizada pela Editora “Candeira” no ano de 1999, visando à eleição dos 10 maiores livros espíritas do século XX, o livro de José Herculano Pires intitulado “O Espírito e o Tempo – Introdução Antropológica ao Espiritismo (PIRES, 2003)” foi considerado através de votação (cujos eleitores eram renomados trabalhadores espíritas de diversas áreas de atuação) o sétimo melhor livro espírita do século XX.
                Nesse contexto, algumas informações concernentes à famosa obra contra o roustainguismo denominada “O Verbo e a Carne” (ABREU FILHO E PIRES, 1973) seriam úteis para a compreensão da elaboração do referido texto e de suas motivações.
        A emblemática obra contra o Roustainguismo “O Verbo e a Carne” de autoria de Júlio Abreu Filho e José Herculano Pires (ABREU FILHO E PIRES, 1973) tornou-se, indiscutivelmente, uma das maiores referências contra o histórico processo cismático gerado no movimento espírita pela obra “Os Quatro Evangelhos” de J.B. Roustaing (ROUSTAING, 1994). Em verdade, Júlio Abreu Filho, célebre tradutor da Revista Espírita de Allan Kardec, havia escrito a obra “Erros Doutrinários (O sentido do roustainguismo)” (ABREU FILHO, 1973), que consistia em uma réplica à infeliz defesa do pensamento roustainguista intitulada “Elos Doutrinários” (BRAGA, 2000) de autoria de Ismael Gomes Braga e, segundo o próprio Júlio Abreu Filho “...constituído, ao que nos parece, de uma série de erros doutrinários”(grifo de J.A.F.)”. (ABREU FILHO E PIRES, 1973).
                       Como surgiu, então, a interessante co-autoria de J. Abreu Filho e Herculano Pires? É o próprio Herculano quem responde isso em um relato histórico que prefacia a obra “O Verbo e a Carne”. Diz Herculano:
        “No seu leito de libertação, pouco antes de abandonar o casulo do corpo e voar para o Além, Julio Abreu Filho conversava comigo e Jorge Rizzini sobre questões doutrinárias. Surgindo o problema do Roustainguismo lembrei o seu trabalho a respeito e a necessidade de reeditá-lo. Julio entusiasmou-se com a ideia e incumbiu-me de tratar o assunto...”
        “Falei a Julio da necessidade de uma revisão do texto e de acréscimo de notas explicativas. Ele me autorizou a fazer o que fosse necessário, pois compreendia a exigência de atualização. Mas ao reler o trabalho de Julio vi que era necessário fazer um pouco mais. Esse trabalho é polêmico e seguiu os rumos determinados pelas circunstâncias. Embora muito valioso, particularmente pelos dados que o informam, devia ser amparado por um esforço de análise metódica. Pensei numa introdução, mas o assunto exigiu mais do que eu pensava. Fui levado a escrever um pequeno livro, que é uma introdução analítica ao livro de Julio. Assim, achei melhor que ambos figurassem num volume único, sob um título geral” (J. Herculano Pires, 1972) (ABREU FILHO E PIRES, 1973).
                       É interessante perceber que Herculano Pires, em um primeiro momento, pensava apenas em reeditar a obra de Júlio Abreu Filho, provavelmente com algumas notas explicativas, mas relendo o referido texto percebeu que uma introdução mais extensa seria necessária, a qual acabou desdobrando-se em um segundo livro. Entretanto, compreendendo o caráter complementar dos dois textos, Herculano decide publicar ambos os textos juntos, sob um título único, fortalecendo o corpo de ideias que, em conjunto, geraram uma das principais contribuições de Herculano Pires ao movimento espírita. Tal predisposição já demonstra como Herculano era aberto às parcerias que pudessem enriquecer o entendimento doutrinário do movimento espírita. Pareceria semelhante ele também desenvolveria com Chico Xavier, a qual abrangeria cinco livros.
 A propaganda roustainguista nos idos da década de setenta era extremamente agressiva e somente a união de dois textos de altíssimo nível, de autoria de dois extraordinários autores espiritistas, poderia gerar a elucidação necessária para que muitos que estavam dominados e outros que estariam predispostos a sucumbir à fascinação roustainguista, não fossem por ela iludidos.
                       Todavia, uma única obra não derrubaria totalmente um processo cismático construído a mais de um século. No entanto, o exemplo de destemor de Júlio Abreu Filho e José Herculano Pires sensibilizou muitos espíritas sérios, que, conscientes de suas responsabilidades, começaram, igualmente, a manifestar suas respectivas opiniões através de artigos e livros, sobretudo após o ano de 1979, quando Herculano desencarnara. De fato, sem a presença física de Júlio Abreu Filho e José Herculano Pires, outros confrades admiráveis assumiram o trabalho desgastante de escrever sobre tão indigesto assunto, em prol do movimento espírita e da futura divulgação doutrinária em níveis de qualidade mínimos, os quais, em um cenário de dominação roustainguista, estavam seriamente ameaçados.
                       Vale acrescentar os comentários finais de Herculano Pires no prefácio da respectiva obra, denotando a motivação dos polemistas autores de “O Verbo e a Carne” em constituir tal volume:
“Muita gente pensa que a questão do Roustainguismo deve ser posta de lado. Essa é uma atitude cômoda, mas não corresponde às exigências da boa compreensão doutrinária. Espero que o nosso trabalho – o meu e o de Julio Abreu Filho – concorra para melhor entendimento do problema” (José Herculano Pires, 1972) (ABREU FILHO E PIRES, 1973).
                       Portanto, Herculano Pires deixa claro que o esforço de ambos os autores visava a uma maior compreensão doutrinária, a qual somente pode ser lograda sabendo não somente o que é Espiritismo, mas também o que não é Espiritismo, com clareza e objetividade, a fim de que não nos percamos em cismas bem urdidas, como já aconteceu em outros contextos dentro da história do Cristianismo.
                      
Referências Bibliográficas
MOREIRA, Leonardo Marmo. Herculano Pires: A Visão Doutrinária e a Ação no Movimento Espírita. Jornal de Estudos Espíritas. 3. 010205.
LAVARINI, Chrystiann. Herculano Pires e o papel do intelectual espírita na organização da cultura. Jornal de Estudos Espíritas. 3. 010206.
RIZZINI, Jorge. J. Herculano Pires - O Apóstolo de Kardec - O Homem A Vida A Obra. Paideia. 1 ed. 2001.
PIRES, Heloísa. Herculano Pires, o Homem no Mundo.  1 ed. Edições FEESP. 1992 acesso em abril de 2015.
PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo – Introdução Antropológica ao Espiritismo. 8 ed. Paideia. 2003.
www.fundacaoherculanopires.org.br acesso em abril de 2015.
ABREU FILHO, Júlio e PIRES, José Herculano. O Verbo e a Carne – 2 Análises dos Roustainguismo. 1 ed. Edições Cairbar. 1973.
ROUSTAING, J. B. Os Quatro Evangelhos.  FEB. 8 ed. 1994.
ABREU Filho. Erros Doutrinários. Edições Caibar. 1 ed. 1973.

BRAGA, Ismael Gomes. Elos Doutrinários. FEB. 4 ed. 2000.

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