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Sobre a reencarnação de Kardec, o que disseram Chico Xavier e amigos

Paulo Neto
“Os espíritas de hoje farejam supostas reencarnações do mestre nas veredas escusas da mediunidade aviltada, como se ele, Kardec, fosse também um espírito errante que não se fixou nos planos elevados e espera uma ordem para descer de novo à reencarnação.” (Herculano Pires).
Introdução
Os entusiastas que dizem que Chico Xavier foi Kardec, apresentam listas de pessoas que afirmam terem sidos “amigas” do Chico, para sustentarem aquilo em que acreditam, supondo-se com autoridade no assunto.
Podemos apresentar outras pessoas como contraponto desse tipo de argumentação. Não nos preocuparemos em listar muitas delas; apenas algumas, somente para demonstrar que, opinião por opinião, ficamos com a destes; não por negarem, mas por serem pessoas sabidamente lúcidas, não dadas a agir com entusiasmo em questões doutrinárias, sem, jamais, abdicar do bom senso e da lógica.
Relembramos uma frase de Gandhi, muito pertinente ao caso em análise: “O erro não se torna verdade por se difundir e multiplicar facilmente. Do mesmo modo a verdade não se torna erro pelo fato de ninguém a ver.” (ROHDEN, 2012, p. 155).
Cinco opiniões que destacamos
Queríamos colocar as opiniões por ordem de data, mas, infelizmente, não tivemos condições técnicas de fazer isso; então optamos por colocá-las pela ordem alfabética dos nomes.
1ª) Carlos Alberto Braga Costa (1966- )
Na obra Chico, diálogos e recordações… relata narrativa de Arnaldo Rocha sobre a reação de Chico ante um presente de Aida Fassanello, que “Tratava-se de um quadro pintado a óleo, muito bonito, que retratava uma cena muito curiosa, de três espanholas, com roupas do século XIX.” (COSTA, 2006, p. 236). Continua Carlos Alberto:
Chico, muito emocionado com o presente, confidenciou-me: “Ela conseguiu registrar, na tela do quadro, o que captou da história que lhe descrevi, sobre nossa amizade anteriormente vivida. Éramos três grandes amigas, (Chico revela que a outra personagem se chamava Maria Yolanda – referindo-se a Dona Neném), e vivemos na cidade de Barcelona no século XIX, meu nome era Dolores del Sarte Hurguesa Hernandes.” (COSTA, 2006, p. 236, grifo em itálico do original, em negrito nosso).
Essa é, na obra, a última personagem mencionada das supostas reencarnações anteriores de Chico Xavier.
Um pouco mais à frente, lemos o seguinte diálogo entre Carlos Alberto e Arnaldo Rocha:
– Arnaldo, então Chico é um espírito feminino, se podemos assim nos expressar?
– Meu filho, busquemos a Codificação Espírita para nos auxiliar nas digressões. Que Chico Xavier nos apresentou, nessa sua última reencarnação, um perfil feminino em essencialidade, não restam dúvidas. O que fica para nós é o desejo real de apreender com a Doutrina Espírita sobre o trâmite do espírito em suas polaridades sexuais. Tal compreensão é imprescindível para que não nos percamos em conjecturas que poderão nos fixar apenas na forma, esquecendo o conteúdo apresentado, não só através dessas despretensiosas recordações mas, acima de tudo, na exuberância espiritual desse espírito de escol. (COSTA, 2006, p. 237-238, grifo nosso).
Diante dessa informação, fica bem claro que Chico não foi Kardec.
Essa obra de Carlos Alberto, intitulada Chico, diálogos e recordações…, da qual transcrevemos os trechos acima, é uma publicação da UEM – União Espírita Mineira; portanto, temos um órgão federativo, de uma certa forma, apoiando as revelações contidas nela.
2ª Carlos de Brito Imbassahy (1883-1969)
Na segunda parte da obra Quem pergunta quer saber, temos a informação de que o material foi retirado da Coluna publicada pelo “Jornal Espírita” (JE) editado pela LAKE, no período compreendido entre 1984 e 1990.
Comecemos pela extraída da carta de nossa companheira Lídia de Oliveira Lima – São Caetano do Sul (SP) – destacando-a: 74. Por que razão sendo Allan Kardec o fundador do Espiritismo não nos envia nenhuma comunicação, já que outros o fazem? Estará ele já encarnado entre nós?
De início, quero declarar que eu (e individualizo a resposta), pessoalmente, não aceito a hipótese de que Kardec tenha se reencarnado posto que não precisa disso. Parece-me que sua grande missão foi plenamente cumprida com toda a fidelidade que lhe cabia. Suas reencarnações pretéritas, pelo que se advém de pesquisas e estudos, sempre foram brilhantes e o ápice delas teria sido a de Codificador da Doutrina dos Espíritos. Completa tão grande missão, não me parece que ele necessitasse de aqui voltar para mais nada e, se o fizesse, seria de tal forma investido de seus predicados que todos o teriam reconhecido, indistintamente.
Possivelmente esteja à frente de grande equipe de trabalho, comandando, da Espiritualidade, uma falange de mensageiros e de trabalhadores encarregados de velar por sua obra e dar-lhe prosseguimento.
Em face disso, é de se admitir que tais referidos mensageiros sejam seus verdadeiros porta-vozes, o que, de imediato, responderia à sua indagação acerca da falta de mensagens oriundas dele próprio: não há necessidade da sua assinatura – e, talvez, até, por prudência – para que continue enviando a nós os seus ensinos.
Os espíritos superiores não têm essa preocupação de se identificar: o importante é que seus trabalhos surtam o efeito desejado.
Há que considerar ainda um outro aspecto muito importante: historicamente estamos vivendo uma fase de decadência, e que parece seja uma das mais acentuadas dentro dos ciclos por que a humanidade vem passando. Nessas condições, não é muito viável que os grandes missionários, por falta de apoio terreno, dedicassem maiores preocupações com o nosso domínio existencial por inoportunidade; é lógico que prefiram esperar o novo renascimento histórico para que, com maiores condições de trabalho, deem prosseguimento às suas respectivas tarefas. E isto seria válido também para Kardec.
Passemos, agora, à carta de Maria José Moreira Pinto – Cachoeira Paulista (SP) – que faz referências à passagem contida em “Obras Póstumas” na qual o Espírito de Verdade fala sobre a possível volta de A. Kardec, reencarnado para dar prosseguimento à Codificação: comenta, ainda, a nota do rodapé do nosso saudoso Herculano Pires, na edição da EDICEL contornando a afirmativa. Contudo, ela indaga:
75. Já se obteve alguma informação a respeito do assunto, isto é, do processo reencarnatório de Kardec?
Como dissemos, com as devidas ressalvas, nada indica que Kardec tenha se reencarnado para dar prosseguimento à Codificação senão se tornaria público e notório, o que não ocorreu já que não se tem devidamente patenteada a tal situação e Kardec não viria novamente ao mundo para fazer uma passagem obscura.
Quanto ao critério imediato de tempo, o que me parece é que este conceito seja muito relativo, tal como nos fala o próprio desencarnado, a saber, aquilo que para nós parece uma eternidade, para eles, perante o mundo espiritual, é um instante de existência. Para que Kardec volte à Terra é preciso que haja condições ideais a fim de que sua obra se complemente como anunciou o Espírito de Verdade.
* * *
Temos recebido várias cartas algumas indagando e outras afirmando que Chico Xavier seria a reencarnação de Kardec e que sua obra mediúnica era o cumprimento da previsão do Espírito de Verdade.
Posso garantir, não só pelo conhecimento com o grande médium e pelos seus pronunciamentos, que isso não é verdade. O próprio Chico, com toda a humildade que possui, se proclama um espírito em prova de resgate, hoje, sem dúvida, com sua missão cumprida, porém, no início na atual existência, muito longe de ser aquele missionário grandioso que acabamos por conhecer. Kardec não viria em tais condições. (IMBASSAHY, 1993, p. 110-112, grifo nosso).
Imbassahy vai direto ao ponto: “não aceito a hipótese de que Kardec tenha se reencarnado posto que não precisa disso”. E ao finalizar deixa nas entrelinhas que também por suas relações com Chico não tem como aceitar essa hipótese.
3ª) Divaldo Pereira Franco (1927- )
Temos duas entrevistas postadas no site YouTube, embora não possamos, com certeza,  assegurar se os programas, que mencionaremos, foram os que deram origem a elas; mas, de qualquer forma, são gravações em vídeo com o próprio Divaldo Franco expressando sua opinião.
a) Globo Repórter:
Repórter: Há quem diga, professor, que Chico seria uma reencarnação de Allan Kardec. Isto procede?
Divaldo: Há essa teoria, que ele desmentiu várias vezes. A mim próprio, em intimidade, ele me narrou algumas experiências anteriores, algumas reencarnações, que nada tem a ver com Allan Kardec. Porém o mais fantástico de tudo isso, é que toda essa convulsão ele se mantinha sereno e dizia meu nome é Francisco, tirando o “fran” eu sou o cisco de Deus. (risos).
Repórter: Há quem diga que ele já teria se reencarnado outra vez.
Divaldo: Anteriormente sim, ele desencarnou no ano de 2002 e está no mundo espiritual.
(https://www.youtube.com/watch?v=vTEstBFFHY8, grifo nosso)
b) Transição
Cláudia Saegusa: O Jorge de Limeira, SP pergunta: “Qual é a sua opinião para aqueles que afirmam que Chico Xavier seria Allan Kardec?”
Divaldo: Desde que eles afirmam devem ter bons argumentos. Eu opto em não me intrometer em teses conflitivas. Pessoalmente, eu não acredito. E não acredito em face de informações que me foram dadas pelo próprio Chico Xavier durante o relacionamento que começou em 1948. Relacionamento esse que nos ensejou muitas informações que não vem ao caso trazer aqui ao ouvido público, mas do ponto de vista psicológico as características de Allan Kardec e as características de Chico Xavier são muito divergentes. Respeito aqueles que assim pensam e tenho o direito de pensar de maneira diferente. Mas para mim o importante não é que ele foi em existência anterior, é o que ele fez na existência atual. Se ele foi Allan Kardec ou não foi, posso asseverar que foi um verdadeiro apóstolo durante a sua mais recente reencarnação, tendo contribuído, como ninguém, para a divulgação do Espiritismo e a interpretação da Doutrina nos seus ângulos mais complexos e nos seus detalhes mais profundos. (https://www.youtube.com/watch?v=ROedB7ME35U, 0':04'' até 1':20'', grifo nosso).
Para o tribuno baiano, Chico não é Kardec reencarnado, com base em informações do próprio “Mineiro do Século”.
4ª) Dora Incontri (1962- )
O texto de Dora Incontri, com a devida autorização da autora, a quem agradecemos, será colocado integralmente, porquanto a análise que ela faz do tema é bem sensata, fugindo à crença cega, que, infelizmente, alguns companheiros espíritas parecem adotar:
Chico Xavier não é Kardec!
Não é objetivo desse artigo atacar quem quer que seja, por manifestar opinião contrária à que vou expor. Mas há questões que devem ser tratadas com cuidado, para não se tornarem elemento de confusão. A crítica franca, aberta, racional, própria dos postulados espíritas, deve ser praticada, fraternalmente claro, sob pena de imergirmos de novo nas trevas medievais. Onde não houver questionamento e crítica, onde não houver debate transparente, certamente haverá dominação, ignorância, apatia e graves entraves à autonomia da razão humana e ao desenvolvimento espiritual da humanidade.
Como em minhas viagens, pelo Brasil afora, sou indagada sobre a polêmica em foco, resolvi manifestar-me publicamente para examiná-la com as ferramentas críticas que tomo emprestadas de Kardec.
Que Chico Xavier seja a reencarnação de Kardec não seria uma hipótese a ser discutida, porque se trata de um absurdo tão sem fundamento que deveria chocar o bom senso de qualquer um (já vi até não-espíritas que conhecem superficialmente a doutrina se mostrarem perplexos diante da ideia). Mas já que se trata de uma afirmativa taxativa na pena de alguns escritores e médiuns, atuantes no movimento, não podemos deixar de analisá-la.
As afirmativas sobre reencarnações
Em primeiro lugar, deveríamos evitar a leviandade que tomou conta de escritores e médiuns espíritas nos últimos anos: afirma-se com o maior descompromisso e sem nenhuma demonstração de evidência que fulano é reencarnação de sicrano e geralmente são pessoas famosas, já desencarnadas, ou personagens históricas – que não podem contradizer tais afirmações. É perfeitamente legítimo o estudo de casos de reencarnação, mas eles precisam ser fruto de pesquisa, de preferência de pessoas próximas e se alguma hipótese for apresentada de personalidades de projeção, deve-se fazê-lo com todo o cuidado, com argumentos bem fundamentados e ainda assim não passará de uma hipótese a ser examinada e comentada por outros pesquisadores.
Um exemplo positivo de um estudo com critério é Eu sou Camille Desmoulins, de Luciano dos Anjos e Hermínio Miranda. São centenas de páginas de pesquisa, em que a personalidade em questão participou, fez regressão de memória, e o autor realizou exaustivas buscas de documentos históricos etc. Outro estudo sério é o de Hernani Guimarães de Andrade, com personagens desconhecidas – crianças com lembranças de outras vidas – em seu livro Reencarnação no Brasil. (De passagem, fica aqui a nossa carinhosa vibração ao Hernani, desencarnado há alguns dias.) Isso apenas para citar autores brasileiros. No plano internacional, há, por exemplo, a excelente pesquisa feita por Ian Stevenson.
Outra forma de estudo de personalidade através de reencarnações foi a realizada pela saudosa e sensatíssima médium Yvonne A. Pereira, no caso de suas próprias vidas passadas. Não houve aí a identificação das personalidades históricas ou a comprovação dessa identidade. Mas uma regressão de memória, promovida pelos Espíritos superiores, para mostrar a trajetória evolutiva de um espírito feminino. Trata-se assim de um estudo psicológico através dos tempos, sem compromisso com a evidência histórica. Uma possibilidade interessante e legítima.
O que não pode acontecer – e acontece com bastante frequência – é simplesmente alguém sair anunciando que fulano foi tal pessoa e aceitar-se isso como fato consumado. Aí exorbita-se do estudo de caso, da pesquisa científica, para se tornar mediunismo inconsequente e dogmatismo sem fundamento.
O pior é quando tais afirmativas contrariam as evidências mais óbvias e a coerência mais superficial entre uma personalidade e outra, que se supõe ser a mesma.
Ou seja, para falar de reencarnação é preciso usar os critérios próprios do espiritismo: pesquisa científica, coerência racional, podendo-se valer igualmente da intuição mediúnica. Mas se essa intuição vier desacompanhada dos outros aspectos, pode se tornar misticismo.
A identidade do eu
Um dos pontos fundamentais demonstrados pelo Espiritismo, que aliás se insere plenamente na tradição socrático-platônica-cristã, é a ideia de uma identidade individual, permanente, que está em progresso e mutação, mas guarda um eu reconhecível, com características próprias de personalidade, com memórias e potencialidades particulares. Até os Espíritos puros, que atingiram a perfeição, cuja personalidade nos é difícil examinar, mantêm, segundo a doutrina espírita, ainda e sempre sua individualidade.
Nos estudos criteriosos de reencarnação, essa verdade salta aos olhos: ninguém poderia negar que Luciano dos Anjos é Camille Desmoulins. As duas individualidades são parecidíssimas. Até nos traços físicos. E isso não é tão incomum. Ian Stevenson faz um estudo intrigante dos sinais de nascença. Às vezes, a ligação com a encarnação anterior é tão vívida, que a criança nasce até com marcas do tipo de morte que teve ou algum trauma sofrido.
Assim como na comunicação de um Espírito por um médium, para sua identificação devem entrar uma série de fatores, evidências, muitas inesperadas, aparentemente fortuitas, mas que no seu conjunto conferem uma forte sensação de que a personalidade comunicante é aquela; na reencarnação, dá-se o mesmo. Apenas um quadro de muitos detalhes, coincidências significativas, semelhanças – nos dá alguma convicção de que tal pessoa esteja ali, reencarnada.
Se nos limitássemos a tratar de casos de reencarnação que obedecessem aos critérios mencionados, evitaríamos lançar a ideia no ridículo.
O caso Chico-Kardec
Poderia escrever muitas páginas com todos os pontos de total dissemelhança entre a personalidade de Kardec e de Chico. Em primeiro lugar, estabeleçamos alguns parênteses. O que sabemos de mais sólido sobre outras existências de Kardec – o resto são inoportunas especulações – são as duas que ele aceitava: a de druida e a de Jan Huss (esta, segundo informação que Canuto de Abreu teria visto em seus manuscritos, antes da Segunda Guerra). Mas nos três momentos conhecidos, dá para notar a coerência de uma personalidade corajosa, viril, segura, austera, de mente límpida e clara (o estilo de Jan Huss é o mesmo de Kardec, simples e cristalino, preciso e firme) e sempre dedicada à educação. Os druidas eram sacerdotes-educadores, Huss foi reitor da Universidade de Praga e Rivail/Kardec foi educador durante mais de trinta anos na França. Quanto ao seu estilo, ele mesmo adverte que não tinha vocação poética, não apreciava metáforas, mas queria atingir o máximo de didatismo e simplicidade. Para isso, tanto Huss quanto Kardec escreveram gramáticas.
Huss desafiou a Igreja Católica e morreu cantando na fogueira em 1415, depois de ter escrito cartas belíssimas da prisão, mostrando sua firmeza e serenidade. Kardec desafiou a Ciência oficial, a religião tradicional e todo sistema acadêmico estabelecido, fundando um novo paradigma para o conhecimento humano, numa síntese genial. Quando estudamos sua vida e sua personalidade, vemo-lo mover-se com absoluta segurança de si, com total equilíbrio, desde os primeiros textos pedagógicos aos 24 anos, até a redação da última Revista Espírita, que deixou pronta antes de morrer. Os próprios Espíritos Superiores o chamam de mestre. O Espírito da Verdade o trata de forma amorosa, aconselhando-o sempre com respeito ao seu livre-arbítrio, à sua capacidade intelectual e à sua estatura moral.
Kardec se ocultou tanto atrás da obra, pela sua extrema modéstia e reserva (que não era a humildade mística de Chico, que se autodenominava verme, besta, pulga, cisco…), que os próprios adeptos do Espiritismo não sabem aquilatar-lhe a grandeza.
Agora, analisemos a pessoa Chico Xavier, que conheci desde a minha primeira infância. Trata-se de uma personalidade doce, amorosa, bastante feminina, emocional, mística, com forte vocação literária e poética (ao contrário de Kardec) mas uma personalidade fraca. Basta ver sua relação com Emmanuel. Seu guia espiritual, aliás forte e altivo, sempre manteve com Chico uma postura disciplinar, rígida, admoestando-o se o via fraquejar.
Veem-se diversas situações desse tipo, na leitura do livro As vidas de Chico Xavier, de Marcel Souto Maior, que considero a biografia mais confiável e melhor bem escrita, porque feita por um profissional do jornalismo, entre tantas que mais parecem relatos de vida de santo da Idade Média, pela linguagem melada, pela louvação exagerada e pelo cunho miraculoso. Basta lembrar de Chico, gritando em pânico, porque o avião, em que estava, ameaçava cair e Emmanuel, diante dele, dizendo: “Dá testemunho da tua fé, da tua confiança na imortalidade! (…) morra com educação!”. Este o Espírito que enfrentou a fogueira, cantando, sem retirar uma palavra do que dissera? A resposta, o próprio Emmanuel já deu ao Chico certa vez: “Meu filho, você é planta muito fraca para suportar a força das ventanias. Tem ainda muito o que lutar para um dia merecer ser preso e morrer pelo Cristo.”
Noutras ocasiões, os próprios encarnados tiveram de adverti-lo severamente, como no caso da adulteração do Evangelho segundo o Espiritismo, na década de 70, que levou Herculano Pires a escrever um livro, Na Hora do Testemunho, no qual quase obrigou Chico à retratação pública, por ter apoiado indiretamente a edição adulterada.
Chico é, pois, um Espírito bom, em processo de resgate e regeneração, ainda enfrentando conflitos internos e desequilíbrios e tendo necessidade do freio curto de Emmanuel para se manter na linha das próprias obrigações. Nunca, diga-se, ele mesmo se viu ou se assumiu de outra forma. Kardec, ao contrário, já 600 anos atrás não revela conflito, não se mostra abalado por nada. Seu companheiro de Reforma, Jerônimo de Praga, chegou a abjurar, com medo da fogueira. Arrependeu-se depois e enfrentou a morte com galhardia. Mas em Jan Huss não há hesitação ou fraqueza, apenas a altivez do Espírito que já atingiu a estatura de um missionário.
Da mesma forma Kardec. Nem sabemos o quanto ele sofreu e foi perseguido, pois não se queixava. Apenas nas entrelinhas de Obras Póstumas, quando se refere por exemplo à Sociedade Espírita de Paris como um ninho de intrigas, é que de longe vislumbramos o que deve ter passado. Mas nunca o vemos abatido ou choroso.
Quanto à linguagem de Chico é também oposta à de Kardec. Trata-se de uma linguagem literária, ornamentada, própria do médium – pois sabemos que o médium influencia as comunicações. Se Chico não tinha cabedal literário nesta vida, é certo que o trouxe de outras, para se tornar o intérprete de tantos literatos do Além. Se Kardec tivesse escrito, por exemplo, Mecanismos da Mediunidade, seria certamente numa linguagem bem mais objetiva, menos literária e mais digerível.
Vou mais longe. Sem ofensa ou menosprezo pelo grande Espírito de Emmanuel, ele próprio fica bem abaixo da estatura espiritual de Kardec. Basta lembrar que enquanto Jan Huss estava morrendo na fogueira por criticar os abusos da Igreja e duzentos anos depois, seu discípulo Comenius estava inaugurando a Pedagogia moderna, em oposição à educação jesuítica; Emmanuel – leia-se Manuel da Nóbrega – estava ainda a pleno serviço da Igreja, imerso no projeto de catequese jesuítica. Tanto ele quanto Anchieta talvez tivessem suas críticas ao movimento de que participavam e, sem dúvida, deram contribuição meritória ao início da educação brasileira. Mas estavam ainda com as correntes mais conservadoras da história, ao passo de Huss (depois Kardec) inaugurara já novas relações entre Deus e o homem, sendo retomado na Reforma de Lutero e aprofundado na proposta educacional de Comenius, que estava a anos-luz adiante da proposta jesuíta.
Com isso, não estou diminuindo a importância nem da personalidade histórica de Manuel da Nóbrega, nem do Espírito Emmanuel, entidade que respeito e amo muito, nem menosprezando a obra que fez por intermédio do Chico. Mas é preciso reconhecer a superioridade de Kardec, coisa que tanto Emmanuel, quanto Chico, sempre reconheceram. Certo dia disse Emmanuel a Chico – e esta é uma passagem conhecida de todos – que se ele, Emmanuel deixasse Jesus ou Kardec, o pupilo deveria deixá-lo. Ora, o guia se submetia a Kardec, como Kardec poderia ser seu tutelado?
O que está por trás dessa ideia
Tudo isso poderia não passar de uma discussão vazia, simples questão de opinião, sem maiores consequências. Mas vejo graves problemas nessa polêmica e só por isso meti-me a falar no assunto. Afirmar que Chico Xavier é reencarnação de Kardec é submeter Kardec ao Chico… logicamente, pela lei da evolução, o mais recente é mais evoluído e portanto vai mais adiante do que o anterior. O que se esconde por trás dessa ideia subliminar, implícita na tese de um ser reencarnação do outro? É que abandonamos, ou, pelo menos, desvalorizamos, os critérios de racionalidade, objetividade, cientificidade, além dos aspectos pedagógicos e da linguagem clara e democrática de Kardec, com todo seu pensamento de vanguarda – para valorizarmos mais a linguagem melíflua (muitas vezes piegas) de Chico, o espiritismo visto predominantemente como religião e os aspectos conservadores tanto do pensamento do médium, quanto de Emmanuel.
Querem ver um exemplo? Kardec, em pleno século XIX, aclamava todas as conquistas da emancipação feminina. Em artigos na Revista Espírita, apoia a reivindicação do voto feminino, parabeniza as primeiras mulheres a se formarem médicas… exalta a participação intelectual da mulher. Emmanuel não deixa de mostrar em diversas passagens de seus livros, ranços de machismo lusitano, romano e da igreja, sempre colocando a mulher ideal como a mais submissa e calada possível.
A tese de que Chico seria Kardec, desqualifica Kardec e exalta indevidamente Chico Xavier, colocando-o num pedestal de idolatria que nenhum ser humano deve ocupar. E isso está bem situado nos rumos que o movimento espírita brasileiro tem tomado: trata-se de um movimento que exalta personalidades mediúnicas (quando Kardec mal nos deixa conhecer o nome dos médiuns que trabalhavam com ele, porque não se constrói liderança em mediunidade, como os antigos pajés da tribo ou as passadas pitonisas da Antiguidade), preferindo o emocionalismo à racionalidade, o igrejismo ao debate filosófico e científico.
É por isso que meu trabalho tem sido no sentido de resgatar Kardec e seus antecessores diretos: Comenius, Rousseau, Pestalozzi – todas personalidades de vanguarda, com pensamento social avançado, com projetos libertários de educação. É desse caldo cultural que nasceu o espiritismo. Transplantado para o Brasil, ganhou as cores místicas da cultura católica, de herança jesuítica, que formou a nação brasileira. É verdade que apenas um povo com o nosso coração e com a criatividade e a intuição mediúnicas como as nossas poderia acolher o espiritismo. É verdade que Emmanuel continuou a sua obra de primeiro educador do Brasil e fez bem a sua parte, por intermédio do Chico, que também fez a sua. Mas não é por isso que devemos colocar os carros na frente dos bois e perder o raiz pedagógica, racional e consistente que nos identifica. E essa raiz é representada por Kardec, que por todas as razões vistas e muitas outras que não é possível comentar aqui, não reencarnou como Chico, não reencarnou ainda, porque teríamos de reconhecê-lo por sua mente poderosa, por sua liderança equilibrada e segura e por trazer uma contribuição muito melhor que a de Chico e mesmo melhor que a do próprio Kardec, pois senão não haveria razão para reencarnar-se. (site Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, grifo nosso, exceto os títulos).
5ª) José Raul Teixeira (1949- )
Entrevista concedida ao Jornal de Espiritismo, da ADEP, Portugal, quando do 6º Congresso Espírita Mundial, Valência, Espanha, em Outubro 2010. Vejamos que, a certa altura, ele disse ao entrevistador José Lucas:
JL – Porque é que há tanto mistério em torno de Allan Kardec? Nas «Obras Póstumas», que não faz parte da codificação, diz que ele voltaria para completar a sua obra. Uns dizem que o Allan Kardec poderia ter sido o Chico, outros dizem que podia ser o Divaldo Franco porque tem todo o perfil de educador, a obra, outros dizem que podia ser o Raul, outros dizem que ele está no mundo espiritual, se está porque é que ele não se comunica, se ele se comunica, se usa pseudônimos ou não usa, porquê tanto mistério quando as coisas são tão simples?
RT – Existem nessas suas abordagens algumas questões equivocadas. Há muitos anos, Chico Xavier disse-me, pessoalmente, numa conversa que tivemos em Uberaba, que a mensagem mais autêntica de Allan Kardec que ele tinha lido, tinha sido recebida pela médium brasileira D. Zilda Gama, professora, que se achava num livro chamado «Diário dos Invisíveis». Eu procurei esse livro, que está esgotado, encontrei-o e estava lá a mensagem de Allan Kardec. Depois disso, nós tivemos uma mensagem de Allan Kardec recebida por vários médiuns na França, no Brasil. Como é que nós podemos dizer que o Chico Xavier é Allan Kardec se ele dizia que a D. Zilda Gama recebera a mais autêntica mensagem? Se enquanto Chico estava encarnado outros médiuns receberam mensagens de Allan Kardec? O «Reformador» publicou essas mensagens. Então, não é que nós queiramos fazer complexidade, é que as pessoas ficam tirando proveito da ignorância alheia. Quanto menos o povo sabe, eu posso dizer as minhas tolices. Agora as pessoas dizem isso, alegam que era por ele ser humilde; então ele enganou-me, porque podia ser humilde e não dizer nada. Mas se ele me disse aquela mensagem, ele era merecedor de crédito, eu não podia duvidar do que falava. Se ele diz a outras pessoas a mesma coisa, ele não podia estar a fingir, senão eu perco o crédito que eu dava à mediunidade de Chico Xavier e ao homem que ele era. De modo que não existe confusão, existem exploradores. O Chico estando desencarnado, toda a gente fala dele o que bem entende, o que bem deseja, e ele não está aí para defender-se, de modo que nós, os espíritas é que temos de ter bom-senso, e bom-senso e água fluidificada não nos fazem mal jamais. Eu não posso acreditar em tudo o que dizem, eu tenho que ver aquilo que tem senso, que tem nexo, e se Allan Kardec estivesse aqui reencarnado, qual seria a vantagem disso para nós? O nosso problema é viver o Espiritismo e não Allan Kardec. Porque também já dizem que Jesus Cristo está aqui reencarnado, e no Brasil há um que diz ser Jesus Cristo.
JL – Tem algum tipo de informação de que Kardec estará ainda no mundo espiritual?
RT – Para mim, ele está no mundo espiritual.
(http://artigosespiritaslucas.blogspot.com.br/2011/01/raul-teixeira-chico-xavier-nao-foi.html, grifo nosso).
A mesma tese que nós defendemos está aqui exposta por Raul Teixeira, ou seja, de que um espírito de pessoa viva não tem como se manifestar mediunicamente, estando ela em estado de vigília.
O testemunho mais importante: o próprio Chico Xavier o quê disse?
Deixamos propositadamente para o fim aquele que colocam no centro dessa polêmica. Certamente que o pobre Chico deve estar “revirando no túmulo” diante de tudo isso, pois em sua vida, diga-se de passagem, um exemplo para todos nós, jamais polemizou ou fez algo que viesse a antagonizar-se com quem quer que seja.
Na data de 28 de agosto de 1988, numa entrevista ao jornal Diário da Manhã, de Goiânia, Chico Xavier respondendo à pergunta se ele seria Kardec reencarnado, afirma:
Consulto a minha via psicológica, as minhas tendências. Tudo aquilo que tenho dentro do meu coração é eu. Não tenho nenhuma semelhança com aquele homem corajoso e forte que, em doze anos, deixou dezoito livros maravilhosos. […]. (COSTA E SILVA, 2004, p. 115-116, grifo nosso).
Certamente, que apelarão para o argumento falacioso de que “O Chico era humilde”, conforme Raul Teixeira pondera na sua fala acima.
Marlene Rossi Severino Nobre (1937-2015), em Lições de sabedoria, informa que nela “estão enfeixadas todas as entrevistas concedidas ao nosso jornal, ao longo dos seus 23 anos de existência (abril de 1974 e março de 1997), pelo médium Francisco Cândido Xavier” (NOBRE, 1997, p. 8), da qual retiramos esse trecho da entrevista concedida ao jornalista e historiador Fernando Worm (1929- ):
FW – Pedindo desculpas por minhas ilações a respeito da pergunta que respeitosamente faço aqui, lembraria que no capítulo intitulado Minha Volta, escrito por Allan Kardec em 10/6/1860, constante de Obras Póstumas (FEB, pág. 300), diz o Codificador: “Calculando aproximadamente a duração dos trabalhos que ainda tenho de fazer e levando em conta o tempo de minha ausência e os anos da infância e da juventude, até a idade em que um homem pode desempenhar no mundo um papel, a minha volta deverá ser forçosamente no fim deste século ou no princípio do outro”. Até o momento, ao que consta, ninguém sabe quem é ou teria sido Allan Kardec nessa prevista reencarnação. Inobstante, acha possível que essa previsão do Codificador não se tenha cumprido?
[Chico Xavier] Pessoalmente, não tenho até hoje qualquer notícia dos Espíritos Amigos sobre o regresso do Codificador à Terra pelas vias da reencarnação. Respeito as indagações que se fazem nesse sentido, mas, de mim mesmo, admito que em se tratando de Allan Kardec reencarnado, a obra que ele esteja efetuando, ou que virá a realizar, falará com eloquência com relação à presença dele seja como for, ou em qualquer lugar. (1/77). (NOBRE, 1997, p. 170-171, grifo nosso).
Ora, aqui, a afirmação de Chico é taxativa: “não tenho até hoje qualquer notícia dos Espíritos Amigos sobre o regresso do Codificador à Terra pelas vias da reencarnação”; não há como contestar. Dissemos não há, levando em conta pessoas sensatas, porque as que se enveredam pelas vias do fanatismo cego refutam qualquer informação que não se ajusta à maneira deles pensarem.
É bom registrar que Drª. Marlene Nobre era partidária da tese de que Chico era Kardec; entretanto, se usamos dessa obra escrita por ela, vemos que ela cai em contradição com aquilo que sabia ser a opinião do próprio Chico.
Na entrevista a Herculano Pires, no programa radiofônico “No Limiar do Amanhã”, ocorrida no ano de 1971, ouve-se na própria voz de Chico:
Pergunta nº 10 – Reencarnação de Kardec
Renato – Existe alguma notícia, já que se fala tanto, do plano espiritual sobre a reencarnação de Kardec aqui no Brasil ou em algum outro país?
Chico Xavier – Até hoje, pessoalmente, eu nunca recebi qualquer notícia positiva a respeito da presença de Allan Kardec reencarnado no Brasil ou alhures. Entretanto, eu devo dizer que em se tratando desses vultos veneráveis do nosso movimento, seja do cristianismo, seja do espiritismo, pessoalmente eu tenho muito receio de receber qualquer notícia, porque temo, pela minha fragilidade, e estimaria não ser o médium de notícias tão altas.
J. Herculano Pires – Excelente, Chico, essa resposta, porque infelizmente há por aí uma onda de reencarnações de Allan Kardec. Infelizmente há. Nós sabemos que isso são perturbações que ocorrem no movimento espírita em virtude da invigilância dos médiuns e da falta mesmo de compreensão de grande parte dos nossos companheiros no tocante à significação de uma personalidade espiritual como a de Kardec. De maneira que a sua resposta é também para nós de um valor inestimável.
Chico Xavier – Muito obrigado. Pensamos que, quando Allan Kardec surgir ou ressurgir, ele dará notícias de si mesmo pela sua grandeza, pela presença que mostre. (sites: Youtube e Fundação Herculano Pires, grifo nosso).
Chico é categórico na afirmativa de que “eu nunca recebi qualquer notícia positiva a respeito da presença de Allan Kardec reencarnado no Brasil ou alhures”; por que, então, insistem nesse ponto? A não ser que pensem ter Chico deliberadamente mentido sobre o assunto…
Observe, caro leitor, que o jornalista Herculano Pires, ao dizer “Excelente, Chico, essa resposta, porque infelizmente há por aí uma onda de reencarnações de Allan Kardec”, expõe  também a sua opinião contrária, ou seja, de que Chico seja Kardec; acreditamos que de certa forma, um tanto quanto indignado com a celeuma.
Em entrevista ao programa Pinga-fogo, de julho 1972, pela extinta TV Tupi, o próprio Chico Xavier afirmou:
Quando ouvimos o Espírito de Emmanuel pela primeira vez, e que ele nos fez compreender a importância do assunto, nós nos informamos com ele de que, em outras vidas, abusamos muito da inteligência, nós, em pessoa, e que nesta consagraríamos as nossas forças para estar com ele na mediunidade, nos serviços de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Espiritismo, e por isso mesmo coloquei minha vida nas mãos de Jesus e nas mãos dos bons Espíritos. (GOMES, 2010, p. 232-233, grifo nosso).
Será que a afirmativa de “em outras vidas, abusamos muito da inteligência” caberia ao Codificador do Espiritismo?
Apresentamos um bom candidato
Já que muita gente aponta o seu candidato a Kardec reencarnado (parece-nos até tempos de eleição), vamos usar do nosso direito de também apresentar o nosso.
Trata do jornalista José Herculano Pires (1914-1979), que cumpriria bem este papel. Ele nasceu dentro do início do século XX, conhecedor profundo da Doutrina Espírita, defendendo-a, incansavelmente, dos possíveis enxertos que a desencarrilhariam dos trilhos da “pureza doutrinária”, cultura invejável, várias obras publicadas, etc. Foi, segundo Emmanuel, mentor de Chico, o “melhor metro que mediu Kardec”.
Uma pena é que o próprio Herculano declinou-se de sê-lo, conforme podemos constatar numa entrevista que deu ao Programa Limiar do Amanhã, nº 144, do qual transcrevemos o trecho que interessa ao estudo:
Pergunta nº 3: Reencarnação de Allan Kardec
Locutor – O senhor é a encarnação de Allan Kardec? Seja franco. Caso não possa responder a essa pergunta por alheias à nossa curiosidade, não haverá problema.
J. Herculano Pires – Não sou a reencarnação de Allan Kardec. Estou muito longe de Allan Kardec para pretender ser a reencarnação dele. Mas a sua pergunta é interessante porque vem nos colocar diante de um problema que é muito comum hoje no meio espírita. Como Kardec, em suas Obras Póstumas, numa de suas anotações, registrou que ele teria de voltar ao nosso mundo, talvez nos princípios do século próximo, que seria precisamente o século vinte, ele teria de voltar para continuar a sua obra, há então uma intensa curiosidade no meio espírita de se procurar saber quem é que representa Kardec em nosso tempo. Haveria alguém reencarnado que seria Allan Kardec? Acontece que essas previsões feitas por um homem encarnado, segundo a própria doutrina espírita nos explica, essas previsões são muito improváveis. Quando estamos na matéria, é como diz Emmanuel, nós estamos como que envolvidos pela neblina – ele chama a matéria, a neblina da carne. O espírito tateia, por assim dizer, sem a luz necessária, sem a visão precisa para andar de fato em direção ao futuro. Ele tateia apenas no presente, realizando as suas experiências necessárias, e este condicionamento lhe é imposto precisamente porque ele necessita dele para a sua evolução, para o desenvolvimento das suas faculdades espirituais.
Assim, Allan Kardec, não obstante a sua grandeza espiritual, estando encarnado, ele não podia prever quando voltaria à Terra. Essa é uma posição em que Kardec faz apenas uma hipótese, uma suposição a respeito da sua vida, é uma dedução que ele faz como qualquer homem pode deduzir a respeito dos seus problemas. Isto não foi uma profecia e nem é princípio de doutrina. Kardec não pode e não deve estar obrigatoriamente reencarnado só porque apareceu essa alusão a sua próxima encarnação em Obras Póstumas. Não vamos fazer dogmas daquilo que corresponde apenas a uma previsão puramente humana. A verdade é que a obra de Kardec ainda não foi suficientemente estudada por nós, ainda há muito que devassar em Kardec, muito o que aprender em Kardec. Qual a razão porque ele teria de voltar a fim de prosseguir a obra, desenvolvê-la ainda mais? Nós não estamos ainda necessitando desse desenvolvimento. Basta ver o seguinte: o desenvolvimento das próprias ciências, em nosso tempo, só agora está levando essas ciências a se confrontar com a ciência espírita. A ciência espírita esteve tão na frente das ciências atuais que elas só agora estão se aproximando. Veja o próprio problema que o senhor colocou da antimatéria. Esse problema já estava no Espiritismo desde o século passado, desde 1857, quando Kardec publicou o Livro dos Espíritos, esse problema da antimatéria, do corpo espiritual do homem, tudo isso já foi colocado ali cientificamente por Kardec. Entretanto, só agora a ciência está tateando nesse terreno. Então que necessidade teria Kardec de voltar para cá? É bom que os espíritas se acautelem. A sua colocação do problema nos dá a oportunidade lembrar isso. Aqui mesmo em São Paulo existe um cidadão, médium psicógrafo que se apresenta declaradamente como a reencarnação de Kardec, e muitos espíritas têm aceitado isso, apesar de a situação bastante inferior mental e culturalmente desse nosso companheiro, que não tem capacidade nem para discernir o absurdo que ele está falando, e se apresenta como reencarnação de Kardec. É preciso que os espíritas usem daquilo que Kardec sempre apresentou como base da doutrina: o bom senso, e não se deixem levar por tolices. Como o senhor quer me atribuir a qualidade de reencarnação de Kardec? O que eu fiz, o que eu tenho feito para merecer esta suspeita? É claro que precisamos ter muito cuidado nisso e não precipitar as coisas. O senhor chega a colocar o problema assim como uma coisa mais ou menos confidencial. Se eu não puder responder pelo programa, para lhe responder pessoalmente, se não puder responder, que não responda. Não. Eu responder sim: eu não tenho nada que ver com reencarnações de Kardec! Kardec é um espírito infinitamente superior ao meu. Eu sou uma criatura humana como qualquer outra e cheia de muitos defeitos, imperfeições e de muita ignorância.
Kardec era um homem de inteligência suprema, que tinha uma cultura superior ao seu tempo, como ele provou, deixando-nos, através do Espiritismo, uma formulação precisa da doutrina que antecipa o próprio desenvolvimento das ciências em nosso tempo. Vamos deixar esse problema, portanto, bem claro: não sou, não pretendo ser, não penso que sou, não tenho a menor intenção de ser uma reencarnação de um espírito que está muito acima de mim. (site Fundação Herculano Pires).
É uma pena, nosso candidato não passou no teste… Entretanto, as considerações de Herculano Pires são atualíssimas, que merecem uma profunda reflexão de todos aqueles que advogam Kardec ter reencarnado, especialmente, aos espíritas que apresentam Chico, o “Cisco de Deus”, como seu candidato.
Conclusão
Já o dissemos algumas vezes que, cabe aos partidários da tese de que Chico é Kardec, provar que todas as vezes que o Espírito Kardec se manifestou quando Chico ainda estava encarnado, que ele estava nos “braços de Morfeu”.
Interessante que para evitar nos apresentar as provas, partiram para dizer que o Espírito de uma pessoa viva pode, sim, se manifestar mediunicamente. Muito bem; porém, a realidade é bem outra como, sobejamente, demonstramos em nosso texto “Manifestação de Espírito de pessoa viva: é possível em estado de vigília?”, sugerindo sua leitura aos possíveis interessados. Está disponível em nosso site www.paulosnetos.net, na Categoria “Artigos e Estudos”.
Anteriormente, deixamos, propositalmente, de pedir outras provas, pois sabíamos que não conseguiriam sair dessa primeira; mas, por agora, talvez seja um bom momento para as trazermos, para ver que as coisas não são tão simples como supõem.
– Carlos Alberto Braga e Weimar Oliveira, publicaram, respectivamente, as obras Chico Xavier, diálogos e recordações… e A volta de Allan Kardec, o primeiro com o aval da União Espírita Mineira e o segundo com o da Federação Espírita do Estado de Goiás, em que cada um dos autores lista os nomes dos personagens das supostas reencarnações anteriores de Kardec; são, por incrível que pareça, completamente divergentes. Então, o desafio é: que nos provem qual das duas é incontestavelmente a verdadeira.
– Em nosso texto “Que se apresentem os candidatos a Kardec reencarnado”, apontamos, fora o Chico, mais cinco outros candidatos. Poderiam nos provar a possibilidade de cada um deles não ser Kardec reencarnado?
– Derrubar todas as evidências que Dona Nena Galves, amiga pessoal do Chico, apresenta em sua obra Até sempre, Chico Xavier.
– Por que razão não vemos médiuns, totalmente confiáveis, receberem dos Espíritos superiores a confirmação cabal de todas as reencarnações de Kardec, ou, pelo menos, que confirmassem que Chico foi Kardec? A única exigência que fazemos é que isso não venha de nenhuma região do Estado de Minas Gerais, pois, por aqui, já idolatram o Chico, querendo fazer dele o Kardec reencarnado.
– Provem, ainda, que os nomes que citamos aqui estão enganados ao não aceitarem Chico como sendo Kardec em nova reencarnação.
– Por fim, que demonstrem qual é a utilidade prática para a Doutrina Espírita toda essa insistência em relacionar Chico a Kardec, a não ser oferecer munição aos adversários.
Os católicos transformaram Jesus em Deus, os espíritas (alguns) querem transformar Chico em Kardec, mutatis mutandis, é a mesma coisa, guardadas as devidas proporções.



Paulo da Silva Neto Sobrinho
abr/2015.
(versão 2 – mai/2015).




Referência bibliográfica
COSTA, C. A. B. Chico, diálogos e recordações… Belo Horizonte: UEM, 2006.
COSTA E SILVA, L. N. Chico Xavier, o mineiro do século. Bragança Paulista, SP: Lachâtre, 2004.
IMBASSAHY, C. B. Quem pergunta quer saber. São Paulo: Petit, 1993.
NOBRE, M. R. S. Lições de sabedoria: Chico Xavier nos 23 anos da Folha Espírita. São Paulo: Editora Jornalistica Fé, 1997.
GOMES, S. Pinga-fogo com Chico Xavier. Catanduva, SP: Intervidas, 2010.
ROHDEN, H. Mahatma Gandhi: a apóstolo da não-violência. São Paulo: Martin Claret, 2012.
Divaldo P. Franco, entrevista Globo Repórter, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vTEstBFFHY8, acesso em 21.04.2015, às 12:12hs.
Divaldo P. Franco, entrevista Transição, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ROedB7ME35U, 0':04” até 1':20”, acesso em 21.04.2015, às 12:14hs.
Raul Teixeira, entrevista Jornal de Espiritismo, da ADEP, Portugal, disponível em http://artigosespiritaslucas.blogspot.com.br/2011/01/raul-teixeira-chico-xavier-nao-foi.html, acesso em 21.04.2015, às 12.45hs.
Chico Xavier, entrevista a Herculano Pires, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ddC170LLKQ e http://www.fundacaoherculanopires.org.br/nolimiardoamanha/especial1aniversario
Herculano Pires, entrevistado, disponível em: http://www.fundacaoherculanopires.org.br/nolimiardoamanha/programa144
Dora Incontri, Chico não é Kardec, disponível em http://pedagogiaespirita.org.br/tiki-read_article.php?articleId=33, acesso em 23.04.2015, às 10:58hs.

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